A questão dos direitos do público tornou-se inadiável. As enormes transformações que estão ocorrendo nos meios de comunicação e circulação e intercâmbio da cultura exigem o estabelecimento de normas que nos garantam a condição de sujeitos — muito mais do que consumidores
Felipe Macedo
A 1ª Conferência Mundial de Cineclubismo, realizada na Cidade do México, no final de fevereiro de 2008, recuperou a Carta dos Direitos do Público, um verdadeiro manifesto e um esboço de programa de defesa do público e de luta pelo reconhecimento de seus direitos e das entidades que os representam.
A Carta foi aprovada em 1987, na cidade de Tabor, na Tchecoslováquia (hoje República Tcheca), quando apenas se reconheciam os grandes traços da transformação dos paradigmas de comunicação e informação, assim como da generalização em escala inédita dos meios e produtos audiovisuais. Mantém-se absolutamente atual e, mais que isso, urgente. Com base nela, o Conselho Nacional de Cineclubes está lançando uma campanha em defesa dos direitos do público.
Nunca os meios e produtos de comunicação audiovisual — da televisão ao cinema, dos DVDs aos celulares — tiveram tanta disseminação em todo o mundo. Por outro lado, especialmente nos países “em vias de desenvolvimento” ou mesmo “emergentes”, o acesso à qualidade e pluralidade das formas de comunicação e expressão do conhecimento e da arte estão cada vez mais restritas. São restringidas pela privatização e controle da circulação das obras de arte e dos bens culturais. Houve uma incrível diminuição de distâncias de comunicação e uma inédita diversificação de meios e produtos culturais. Mas a “otimização” de segmentos de mercado, o controle dos “direitos de propriedade intelectual” e, enfim, os preços abusivos relegam a quase totalidade das populações de países como o nosso à periferia do conhecimento e da cultura universais. É uma posição colonial diante da circulação da cultura, uma proletarização no acesso à comunicação, à cultura, à cidadania.
Desde seu surgimento, no início do século 20, os cineclubes foram os únicos a advertir sobre o mal uso do cinema. Desde logo, atuaram no sentido de organizar o público. Há cerca de 90 anos, trabalham e confundem-se com este.
"Não queremos consumidores de comunicação. Queremos um público ativo, consciente, responsável, capaz de propor e conhecedor de seus próprios direitos inalienáveis"
Constroem uma experiência única de inclusão e representatividade, já que “cremos que o público deve ser considerado como tal, e não ser visto como incapaz de autonomia e liberdade, destinado a assumir e aceitar o papel de consumidor passivo, mudo, que apenas assimila tudo o que se lhe oferece das mais diversas maneiras. Depois esse consumidor é consumido pelos mesmos meios de comunicação: porque paga como assinante de televisão; paga como espectador na bilheteria do cinema; paga ao comprar o jornal; paga os produtos que a publicidade, infiltrando-se com uma freqüência vertiginosa e absolutamente intolerável nas transmissões televisivas, lhe propõe e impõe... Mas nós não queremos consumidores de comunicação, queremos um público sujeito ativo, consciente, responsável, capaz não apenas de propor – porque deve propor – mas igualmente conhecedor de seus próprios direitos que, para nós, são inalienáveis e essenciais, para que o cidadão cresça e possa alcançar os níveis do autogoverno.” [1]
A degradação do conceito de direito autoral, manipulado por corporações de porte planetário, expõe a fragilidade de direitos fundamentais do público, consagrados nos maiores textos constitucionais [2]. De fato, as corporações apropriam-se indevidamente das obras e produtos do conhecimento e das artes, não apenas restringindo economicamente seu acesso a uma pequena “elite”, mas reprimindo ativamente iniciativas culturais e educativas sem finalidades lucrativas.
Exemplo recente e notório é o do Cineclube Falcatrua, [3]atividade de extensão universitária, exercida no recinto da Universidade Federal do Espírito Santo sem cobrança de qualquer taxa, processado pela exibição de dois filmes disponibilizados publicamente pelos seus autores/realizadores. Em todo o Brasil, cineclubes, prefeituras, até cidadãos privados recebem notificações e ameaças quanto à exibição de obras audiovisuais sem intuito de lucro – contradizendo diretamente o art. 184 do Código Penal.]].
As relações entre os meios audiovisuais de comunicação e o público são reguladas, basicamente, pelos interesses das grandes corporações de comunicação. O público — que no mundo moderno praticamente confunde-se com o conjunto da população — é encarado e relegado ao papel de platéia passiva, de espectador submisso, de consumidor desprovido de interesses e inteligência, mero objeto e nunca sujeito do processo de comunicação.
"Porque se continuássemos apenas a escutar, sem usar esses instrumentos para nos expressarmos, perderíamos a própria substância do ser humano”
Os direitos do público não se restringem, portanto, ao livre acesso à informação e à cultura, mas incluem o direito de responder, participar e intervir no processo de comunicação - individualmente ou por meio das entidades que representam seus interesses. “Porque se continuássemos apenas a escutar, sem usar esses instrumentos para nos expressarmos, perderíamos a capacidade de comunicação entre os homens, que forma a própria substância do ser humano” [4].
A questão dos direitos do público tornou-se urgente e inadiável. As enormes transformações que estão ocorrendo nos meios de comunicação e nas formas de circulação e intercâmbio da cultura da humanidade, exigem o estabelecimento de normas que assegurem o direitos de todos e de cada um.
Por isso a Carta dos Direitos do Público. É uma tomada de posição inicial no campo do audiovisual, para uma ampla mobilização civil em prol da definição clara e inequívoca dos direitos da população — que deve e exige participar, ativa e conscientemente, do processo de comunicação entre as pessoas, regiões, povos e culturas.
Leia mais:
http://diplo.uol.com.br/2008-03,a2289
Parabéns ao movimento cineclubista pela coluna.
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