quinta-feira, março 11, 2010

A velha apologia à cavalaria.

9 de Março de 2010


Venceu o filme a favor da máquina de guerra
Ao contrário do que parece à primeira vista, a polarização entre
Avatar e Guerra ao Terror não traduz uma disputa entre cinema
industrial e cinema independente, nem batalha entre homem e mulher. O
que estava em jogo e continua é o confronto entre um filme contra a
máquina de guerra e a economia que a alimenta e outro absolutamente a
favor, com estratégias subliminares a serviço da velha apologia à
cavalaria.

Por Luiz Bolognesi*
Avatar foi acusado nos Estados Unidos de ser propaganda de esquerda. E
é. Por isso é interessante. No filme, repleto de clichês, os vilões
são o general, o exército americano e as companhias exploradoras de
minério do subsolo. Os heróis são o "povo da floresta". A certa
altura, eles reúnem todos os ''clãs'' para enfrentar o invasor
americano.

Clãs? Invasor americano ? Que passa? É difícil entender como a
indústria de Hollywood conseguiu produzir um filme tão na contramão
dos interesses do país e transformá-lo no filme mais visto na história
do cinema. Esse fato derruba qualquer teoria conspiratória, derruba
décadas de pensamento de esquerda segundo a qual a indústria de
Hollywood está sempre a serviço da ideologia do fast-food e da
economia que avança com mísseis, aviões e tanques. Como explicar esse
fenômeno tão contraditório?

Brechas, lacunas na história. Ou como diria Foucault, a história é
feita de acasos e não de uma continuidade lógica cartesiana. A
necessidade do grande lucro, da grande bilheteria mundial produziu uma
antítese sem precedentes chamada James Cameron. O homem de Titanic
tinha carta branca. Pelas regras da cultura do "ao vencedor, as
batatas", Cameron podia tudo porque era capaz de fazer explodir as
bilheterias mundiais.

Mas calma lá, cara pálida, uma incoerência desse tamanho, você
acredita que passaria despercebida? O general americano, vilão? As
companhias americanas que extraem minério debaixo das florestas
tratadas como o império das sombras? Alto lá. Devagar com o andor,
mister Cameron.

Aí, alguém chegou correndo com um DVD na mão. Vocês viram esse filme
da ex-mulher do Cameron? Não, ninguém viu? Então vejam. É sensacional.
Ao contrário de Avatar, nesse DVD aqui o soldado americano é o herói.
Aliás, mais que herói, ele é um santo que arrisca sua própria vida
para salvar iraquianos inocentes. Jura? Temos esse filme aí? Sim, o
pitbull americano é humanizado e glamourizado, mais que isso, ele é
santificado.

Então há tempo.

Guerra ao Terror estreou no Festival de Veneza há dois anos. Por acaso
eu estava lá como roteirista de Terra Vermelha, do diretor italian o
Marco Bechis, e fui testemunha ocular da história. O filme da diretora
Kathryn Bigelow foi absolutamente desprezado pelos jornalistas e pelo
público. E seguiu assim. Indo direto ao DVD, em muitos países, sem
passar pelas salas de cinema. Até ser resgatado pela indústria
americana como um trunfo necessário para contestar Avatar e
reverenciar a máquina de guerra e o sacrifício de tantos jovens
americanos mortos e decepados em campo de batalha.

Trabalhando num projeto para o mesmo diretor italiano, que pretendia
fazer um filme sobre os viciados em guerra no Iraque, eu pesquisei o
assunto durante alguns meses. Tudo muito parecido com o filme de
Bigelow, exceto por um detalhe. O detalhe é que os soldados americanos
que se tornam dependentes da adrenalina da guerra tornam-se assassinos
compulsórios e não salvadores de vidas.

O sintoma dos viciados em guerra é atirar em qualquer coisa qu e se
mexa, tratar a realidade como videogame e lidar com armas e balas de
verdade como um brinquedo erótico. Se Guerra ao Terror representasse
nas telas essa dimensão da realidade, seria um filme sensacional, mas
não teria levado o Oscar, podem apostar.

Guerra ao Terror venceu o Oscar porque, como nos filmes de forte
apache, transforma os assassinos que dizimam outras culturas em heróis
santificados. A cena extremamente longa e minimalista em que os jovens
soldados americanos em situação desprivilegiada combatem no deserto os
iraquianos é o que, se não uma cena clássica de caubóis cercados por
apaches?

Sem nenhuma surpresa para filmes desse gênero, os garotos americanos
vencem, matam os iraquianos sem rosto, como os caubóis faziam com os
apaches no velho-oeste. A cena do garoto iraquiano morto, com uma
bomba colocada dentro do corpo por impiedosos iraquianos, que
literalmente m atam criancinhas, tem a sutileza de um elefante numa
loja de cristais. Propaganda baratíssima da máquina de guerra.

No filme de Cameron, os na"vi azuis podem ser os apaches que derrotam
o general e expulsam a cavalaria americana. Mas isso é apenas uma
ficção. Na vida real do Oscar, a cavalaria precisa continuar
massacrando os apaches.

*Luiz Bolognesi é roteirista de filmes como Bicho de Sete Cabeças e
Chega de Saudade

Fonte: O Estado de S.Paulo